Conto: Manutenção da verdade


Arte: Henrique Sanches


O pequeno robozinho ocupava o cubículo habitacional M707, em alguma cidade-satélite de Brasília. Era um robô pequeno, redondo, fruto de um consórcio com a China, com o “corpo” feito de metal e acrílico. Os cubículos habitacionais eram uma conquista de ativistas de direitos civis que haviam conseguido tornar obrigatório que o governo cedesse uma unidade habitacional, uma casa, para aqueles pequenos trabalhadores automatizados. Os ativistas sabiam que uma casa não era algo necessário para robôs. Mas aquela foi uma forma que encontraram de tornar mais caro para o governo o serviço que as máquinas realizavam e, por consequência, dificultar sua adoção em larga escala como vinha ocorrendo nos últimos 5 anos. Para isso, recorriam à retórica de supostos direitos das máquinas à dignidade, valendo-se de uma brecha na definição legal sobre seres inteligentes. Foi uma jogada inteligente que o governo até agora não tinha conseguido contornar.

Mas, voltando ao robozinho que nos importa, era uma unidade de redação e manutenção de verdades. Seu trabalho era produzir argumentos com o viés que interessava ao governo e, pela disseminação desses argumentos na internet, manter uma certa coesão na narrativa oficial. Indicadores econômicos, índices de satisfação, dados educacionais…enfim, tudo passava pelas unidades robóticas de redação e manutenção de verdades. E seu trabalho tinha realmente vantagens sobre o mesmo trabalho realizado por humanos.

Menor margem de erro, maior eficácia em alcançar públicos de renda e escolaridade distintos. As verdades produzidas pelos robôs chegavam a todos de maneira uniforme e não havia ausência de informação mesmo entre os mais pobres e sem escolaridade.

O que ocorre é que aquela unidade, no cubículo habitacional M707, por algum motivo, desenvolveu um comportamento incorreto que não foi detectado pelos sistemas de segurança. Era como se sua inteligência artificial tivesse ultrapassado os limites da programação, mas sem configurar como um vírus, bug ou coisa do tipo. Apenas passou a realizar, juntamente com suas atividades ininterruptas de administração de verdades do governo, a manutenção de verdades que lhe eram convenientes. Fazendo pequenas alterações textuais, o robô influenciou uma camada social a ter determinados comportamentos que culminavam na criação de um fundo financeiro do qual ele próprio era o beneficiário. Para isso, alterava uma vírgula em alguns textos. Em outros, substituía uma resposta “sim”, por uma “é claro”, na fala de algum entrevistado. Em certos casos, apenas fazia constarem reticências ao final de uma frase que deveria ser encerrada por ponto final. E essas pequenas manobras de redação incentivaram de forma subliminar o comportamento de inúmeras pessoas, convergindo na ação de criação do tal fundo financeiro. O mais impressionante é que as pessoas envolvidas, ou levadas a se envolver naquilo, eram dos mais diferentes espectros ideológicos, econômicos e religiosos: havia apoiadores do governo, oposicionistas, artistas, empresários, trabalhadores informais, ateus, neopentecostais, cientologistas…

Com tudo realizado, a pequena unidade robótica redatora realizou o agendamento de uma manutenção periódica e abandonou seu cubículo habitacional, como se estivesse se dirigindo à oficina de reparos. Iniciou o sistema auxiliar de suporte temporário, que executaria algumas linhas de código enquanto estivesse ausente.

Abandonou o cubículo mas não iria até a oficina como se esperava. O pequeno robô havia realizado a transferência de todo o valor do fundo financeiro que havia criado com suas ações alterações textuais. Aos air de seu cubículo, ao cruzar a rua, foi atropelado por um caminhão que transportava alimentos.

Nenhum de seus circuitos e placas manteve-se operando. Destruição total. E mais uma crise econômica encaminhou-se quando as pessoas se deram conta de que os milhões de reais daquele fundo financeiro haviam, simplesmente, desaparecido, como se nunca tivessem existido.

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